segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Trecho - A Mensagem de Romanos, de John Stott.

Este post tem a forma literária aborrecida do que a academia chama de fichamento.


O Dr. J. I. Packer, em sua excelente obra O Evangelismo e a Soberania de Deus, aponta que, mesmo que neguem isso, a verdade é que os cristãos crêem na soberania de Deus na salvação. Dois fatos demonstram isso, ele escreve. "Em primeiro lugar, o crente agradece a Deus pela sua conversão. Ora, por que o crente age assim? Porque sabe em seu coração que Deus foi inteiramente responsável por ela. O crente não se salvou a si mesmo; Deus o salvou. 


Há um segundo modo pelo qual o crente reconhece que Deus é soberano na salvação. O crente ora pela conversão de outros... Roga a Deus para que opere neles tudo quanto for necessário para a salvação deles. Assim os nossos agradecimentos e a nossa intercessão provam que nós cremos na soberania divina. "Quando estamos de pé podemos apresentar argumentos sobre a questão; mas, postados de joelhos, todos concordamos implicitamente." 


Mesmo assim há mistérios que permanecem. E, como criaturas caídas e finitas que somos, não nos cabe o direito de exigir explicações ao nosso Criador, que é perfeito e infinito. Não obstante, ele lançou luz sobre o nosso problema de tal maneira a contradizer as principais objeções que são levantadas e a mostrar que a predestinação gera consequências bem diferentes do que se costuma supor. 


Vamos então a cinco exemplos de reflexões sobre a crença (e também a descrença) na doutrina da predestinação: 


1. Dizem que a predestinação gera arrogância, uma vez que (alega-se) os eleitos de Deus se gloriam de sua condição privilegiada. Mas o que acontece é justamente o contrário: a predestinação exclui a arrogância, pois afinal, não dá para entender como Deus pôde se compadecer de pecadores indignos como eles! Humilhados diante da cruz, eles só querem gastar o resto de suas vidas "para o louvor da sua gloriosa graça" e passar a eternidade adorando o Cordeiro que foi morto. 


2. Dizem que a predestinação produz incerteza e que cria nas pessoas uma ansiedade neurótica quanto a serem ou não predestinadas e salvas. Mas não é bem assim. Quando se trata de incrédulos, eles nem se preocupam com a sua salvação — a não ser que, o Espírito Santo os convença do pecado, como um prelúdio para a sua conversão. Mas, se são crentes, mesmo que estejam passando por um período de dúvida, eles sabem que no final a sua única certeza consiste na eterna vontade predestinadora de Deus. Não há nada que proporcione mais segurança e conforto do que isso. Como escreveu Lutero ao comentar o versículo 28, a predestinação "é uma coisa maravilhosamente doce para quem tem o Espírito". 


3. Dizem que a predestinação leva à apatia. Afinal, se a salvação depende inteiramente de Deus e não de nós, argumentam, então toda responsabilidade humana diante de Deus perde a razão de ser. Uma vez mais, isso não é verdade. A Escritura, ao enfatizar a soberania de Deus, deixa muito claro que isso não diminui em nada a nossa responsabilidade. Pelo contrário, as duas estão lado a lado em uma antinomia, que é uma aparente contradição entre duas verdades. Diferentemente de um paradoxo, uma antinomia não é deliberadamente produzida; ela nos é imposta pelos próprios fatos... Nós não a inventamos e não conseguimos explicá-la. Não há como nos livrar dela, a não ser que falsifiquemos os próprios fatos que nos levaram a ela". Um bom exemplo se encontra no ensino de Jesus quando declarou que "ninguém pode vir a mim, se o Pai não o atrair" e que "vocês não querem vir a mim para terem vida". Por que as pessoas não vão a Jesus? Será porque não podem? Ou é porque não querem? A única resposta compatível com o próprio ensino de Jesus é: "Pelas duas razões, embora não consigamos conciliá-las." 


4. Dizem que a predestinação produz complacência e gera antinomianos. Afinal, se Deus nos predestinou para a salvação eterna, por que não podemos viver como nos agrada, sem restrições morais, e desafiar a lei divina? Paulo já respondeu esta questão no capítulo 6. Aqueles que Deus escolheu e chamou, ele os uniu com Cristo em sua morte e ressurreição. E agora, mortos para o pecado, eles renasceram para viver para Deus. Paulo escreve também em outro verso que "Deus nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença". Ou melhor, ele nos predestinou para sermos conformes à imagem de seu Filho (29). 


5. Dizem que a predestinação deixa as pessoas bitoladas, pois os eleitos de Deus passam a viver voltados apenas para si mesmos. Mas o que acontece é o contrário. Deus chamou um único homem, Abraão, e sua família apenas, não para que somente eles fossem abençoados, mas para que através deles todas as famílias da terra pudessem ser abençoadas. Semelhantemente, a razão pela qual Deus escolheu seu Servo, a figura simbólica de Isaías que vemos cumprida parcialmente em Israel, mas especialmente em Cristo e em seu povo, não foi apenas para glorificar Israel, mas para trazer luz e justiça às nações. Na verdade, estas promessas serviram de grande estímulo para Paulo (como deveriam ser também para nós) quando ele, num ato de grande ousadia, decidiu ampliar sua visão evangelística para alcançar os gentios. Assim, Deus fez de nós seu "povo exclusivo", não para nos tornarmos seus favoritos, mas para que fôssemos suas testemunhas, "para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz". 


Portanto, a doutrina da predestinação divina promove humildade, não arrogância; segurança e não apreensão; responsabilidade e não apatia; santidade e não complacência; e por último, missão, não privilégio. Isso não significa que não existam problemas, mas é uma indicação de que estes seriam mais de ordem intelectual do que pastoral. E o ponto que Paulo quer enfatizar no versículo 29 é, com toda certeza, pastoral. Tem a ver com dois propósitos práticos da predestinação de Deus. O primeiro é que nós devemos ser conformes [viver de conformidade com] à imagem de seu Filho. Ou, dito da forma mais simples possível, o eterno propósito de Deus para seu povo é que nos tornemos como Jesus. 


O processo de transformação começa aqui e agora, em nosso caráter e conduta, por meio da obra do Espírito Santo, mas só será completado e aperfeiçoado quando Cristo vier e nós o virmos, e quando nossos corpos se tornarem como o corpo de sua glória. O segundo propósito da predestinação de Deus é que, como resultado de nos tornarmos conformes à imagem de Cristo, ele passe a ser o primogênito entre muitos irmãos, desfrutando da comunhão da família como também da prerrogativa de ser o primogênito.


quinta-feira, 19 de julho de 2012

O Sapateiro e a Força Maligna - Anton Tchekhov

É interessante o causo da vez em que um sapateiro interpelou Lutero para saber o que deveria fazer para ser um cristão decente. Reza a lenda que Lutero foi pragmático e disse que não era preciso muito, que ele fizesse bons sapatos e os vendesse a preço justo. Teria Jesus dito algo como: venda todos os seus sapatos e me siga? Bom, não sei.

A preguiça é o pecado capital que tento decapitar. Dos poucos autores russos com quem mexi, nenhum me foi mais fácil e agradável que Tchekhov, lê-lo é como comer uma mousse de chocolate da mamãe. Um excepcional contista, sendo o conto o formato favorito dos leitores que leem com as nádegas assentadas no pudim, para manter a coisa na prateleira das sobremesas.

"O cara é fera, bicho" - Fausto. Citar Fausto é algo da mais alta erudição, mas sinto que estou fazendo da maneira errada... 

Ao texto:

Lido em: Livro de Reclamações - Anton Tchekhov
Conto: O Sapateiro e a Força Maligna - Anton Tchekhov


O Sapateiro e a Força Maligna – Era véspera de natal. Fazia tempo que Mária roncava sobre o fogão. Todo o querosene queimara-se na lâmpada, mas Fiódor Nilov continuava sentado, trabalhando. Teria deixado há muito o trabalho e saído para a rua, mas o freguês do Beco dos Sinos, que lhe encomendara, duas semanas atrás, uns canos de bota, viera na véspera, discutira e mandara concluir a encomenda, sem falta, ainda antes da Missa do Galo.

— Vida de forçado! — rosnou Fiódor, enquanto trabalhava. — Uns estão dormindo faz muito tempo, outros estão passeando, e você tem que ficar sentado aí, como Caim, cosendo couro, diabo sabe para quem…

Para não adormecer sem querer, tirava a cada momento uma garrafa, que estava sob a mesa, e bebia pelo gargalo; depois de cada gole, balançava a cabeça e dizia alto:

— Por que, digam-me por favor, os fregueses passeiam e eu devo ficar cosendo para eles? Por que eles têm dinheiro e eu sou um mendigo?

Odiava todos os fregueses, especialmente aquele que residia no Beco dos Sinos. Era um senhor de ar sombrio, cabelos compridos, rosto amarelo, de grandes óculos azuis e voz rouquenha. Tinha um sobrenome alemão, difícil de pronunciar. Impossível perceber qual a sua condição social e de que se ocupava. Quando, duas semanas atrás. Fiódor fora a sua casa, para tirar as medidas, encontrara-o sentado no chão, pulverizando algo num gral. Fiódor não tivera tempo de dizer boa-tarde e o conteúdo do gral de repente se incendiou com uma chama vermelha, fulgurante, passando a sentir-se um fedor de enxofre e penas queimadas, enquanto o quarto se enchia de uma fumaça densa e rósea, que fez Fiódor espirrar umas cinco vezes. Voltando para casa, pensou: “Uma pessoa que teme a Deus não se ocupa de coisas assim.”

Esvaziada a garrafa. Fiódor colocou as botas sobre a mesa e ficou pensativo. Apoiou a cabeça pesada com o punho e pôs-se a pensar em sua pobreza, em sua vida difícil, miserável, e depois nos ricos, em suas grandes casas, carruagens e notas de cem rublos… Como seria bom, diabo que os carregue, se a essa gente rica se rachassem as casas, morressem os cavalos, desbotassem as peliças e os chapéus de zibelina! Como seria bom, se os ricaços se convertessem, pouco a pouco, em mendigos, não tivessem o que comer, e o pobre sapateiro se tornasse um ricaço, passando ele próprio a mostrar sua valentia contra um pobre sapateiro, numa véspera de Natal.

Devaneando assim. Fiódor lembrou-se, de repente, de seu trabalho e abriu os olhos.

“Que coisa!”, pensou, examinando as botas. “Faz muito tempo que terminei os canos de bota e continuo sentado aqui. Tenho que levar a encomenda ao freguês!”

Embrulhou seu trabalho num lenço vermelho, vestiu-se e saiu de casa. Caía neve miúda, áspera, que espetava o rosto como alfinetes. Fazia frio, a noite estava escura, o chão, escorregadio, os lampiões a gás ardiam palidamente e, sem se saber por quê, a rua cheirava a querosene, de modo que Fiódor pôs-se a pigarrear e tossir. Gente rica passava de carruagem e cada ricaço tinha nas mãos um pernil de porco e uma garrafinha de vodca. Mocinhas ricas espiavam para Fiódor das carruagens e dos trenós, mostravam-lhe a língua e gritavam, rindo:

— Mendigo! Mendigo! Atrás de Fiódor, iam oficiais, estudantes, negociantes e generais, que zombavam dele:

— Beberrão! Beberrão! Sapateiro pagão! Alma perdida! Mendigo!

Tudo aquilo era ofensivo, mas Fiódor permanecia calado, apenas cuspia. Quando encontrou, porém, o mestre de sapataria Kuzmá Lebiédkin, de Varsóvia, que lhe disse: “Eu me casei com mulher rica, tenho agora aprendizes trabalhando para mim, e você é um mendigo que não tem o que comer”. Fiódor não se conteve e correu atrás dele. Perseguiu-o até alcançar o Beco dos Sinos. Seu freguês morava na quarta casa a partir da esquina, no último andar. Para ir até seu apartamento, era preciso atravessar um pátio comprido e escuro, depois subir uma escada escorregadia e muito alta, que balançava sob os pés. Quando Fiódor entrou ali, o freguês estava, tal como duas semanas atrás, sentado no chão, pulverizando algo no gral.

—Vossa Alta Nobreza, eu trouxe as botinhas! — disse Fiódor, carrancudo.

O freguês levantou-se e pôs-se a experimentar, em silêncio, as botas. Querendo ajudá-lo. Fiódor abaixou-se sobre um dos joelhos e tirou-lhe a bota usada, mas, no mesmo instante, levantou-se de um salto e recuou, horrorizado, para a porta. Em vez de perna, o freguês tinha uma pata de cavalo.

“Aí!”, pensou Fiódor. “Nisso ë que está a coisa!”

Em primeiro lugar, deveria fazer o sinal-da-cruz, depois deixar tudo e correr para baixo. No mesmo instante, porém, refletiu que era a primeira vez, e provavelmente a última, que encontrava a força maligna e que seria estúpido deixar de aproveitar seus serviços. Dominou-se, por conseguinte, e resolveu tentar a sorte. Colocando as mãos atrás, para não se persignar, tossiu respeitosamente e começou:

— Dizem que não há coisa pior, nem mais repugnante no mundo que a força maligna, mas eu penso. Vossa Alta Nobreza, que a força maligna é a mais instruída. O diabo, perdoe-me, tem pata de cavalo e rabo, mas, em compensação, é mais inteligente que muito estudante.

— Você me agrada por essas palavras — disse o freguês, lisonjeado. — Obrigado, sapateiro! Mas, que quer você?

Sem perda de tempo, o sapateiro queixou-se de seu destino. Começou dizendo que, desde a infância, invejara os ricos. Sempre lhe doera o fato de que nem todos os homens vivessem em grandes casas e passeassem sobre bons cavalos. Por que, perguntava, era ele pobre? Em que era pior que Kuzmá Lebiëdkin, de Varsóvia, que possuía casa própria e cuja mulher usava chapeuzinho? Ele.

Fiódor, tinha o mesmo nariz, as mesmas mãos, pernas, cabeça, costas, que os ricos; por que, então, era obrigado a trabalhar, enquanto os demais passeavam? Por que era casado com Mária e não com uma senhora que cheirasse a perfume? Em casa dos fregueses ricos, acontecia-lhe muitas vezes ver moças bonitas, que não reparavam nele sequer, e apenas às vezes riam, murmurando entre si: “Que nariz vermelho tem esse sapateiro!” Verdade que Mária era uma mulher boa, bondosa, trabalhadeira, mas, realmente, tinha pouca instrução e mão pesada, com a qual sabia machucar de verdade; quando se falava, em presença dela, de política ou de outros assuntos de inteligência, intrometia-se e dizia bobagens tremendas.

— Que é que você quer, então? — interrompeu-o o freguês.

— Peço-lhe. Vossa Alta Nobreza. Diabo Ivânitch, que me faça a bondade de me tornar um homem rico!

— Pois não. Mas, para isso, você tem que me entregar a alma! Enquanto os galos ainda não cantaram, vem cá e assina, nesse papel, que você me entrega a alma.

— Vossa Alta Nobreza! — disse Fiódor com delicadeza. — Quando o senhor me encomendou os canos de bota, eu não lhe pedi pagamento adiantado. É preciso, antes, executar a encomenda e só depois exigir dinheiro.

— Ora, está bem! — concordou o freguês.

Uma chama refulgente surgiu de repente no gral, espalhou-se uma fumaça densa e rósea e sentiu-se no quarto um fedor de penas queimadas e enxofre. Depois que a fumaça dissipou-se. Fiódor esfregou os olhos e viu que já não era Fiódor, nem sapateiro, mas uma outra pessoa, de colete e correntinha, de calças novas, e que estava sentado numa poltrona, junto a uma grande mesa. Dois lacaios serviam-lhe comida, com profundas reverências, dizendo:

— Tenha a bondade de comer. Vossa Alta Nobreza!

Que opulência! Os lacaios serviram um grande pedaço de carneiro assado e um prato fundo com pepinos; em seguida, trouxeram ganso assado; um pouco depois, carne cozida de porco e raiz-forte. E como tudo aquilo era nobre, cheio de etiqueta! Fiódor comia e, antes de cada prato, bebia um copázio de excelente vodca, como se fosse um general ou conde. Depois da carne de porco, serviram-lhe cacha1 com gordura de ganso, em seguida, uma omelete com toucinho e fígado frito. Não parava de comer, entusiasmado. Bem, que mais? Serviram ainda pastelão com cebola, nabo cozido a vapor e kvás2. “Como é que os senhores não estouram com uma comida dessas?”, pensou. Por fim, serviram-lhe um grande pote de mel. Depois do jantar, apareceu o diabo de óculos azuis e perguntou-lhe, com profunda reverência:

— Está satisfeito com o jantar. Fiódor Pantieléitch?

Mas Fiódor não conseguia dizer palavra, tão agoniado sentia-se depois do jantar. Aquela fartura era desagradável, pesada, e, para se distrair, começou a examinar a bota de sua perna esquerda.

— Por botas assim, eu não cobrava menos de sete rublos e meio. Quem foi que as fez? — perguntou.

— Kuzmá Lebiédkin — respondeu o lacaio.

— Chame aquele imbecil!

Pouco depois, chegava Kuzmá Lebiédkin, de Varsóvia. Parou à porta, em atitude respeitosa, e perguntou:

— O que manda. Vossa Alta Nobreza?

— Cale-se! — gritou Fiódor e bateu o pé. — Não se atreva a falar e lembre-se de sua condição de sapateiro, não se esqueça que tipo de pessoa você é! Idiota! Não sabe fazer botas! Vou te dar em cheio, na cara! O que vem fazer aqui?

— Vim buscar dinheiro.?— Que dinheiro? Fora daqui! Volte no sábado! Homem, dá-lhe um pescoção!

Mas, no mesmo instante, lembrou-se de como ele próprio fora tratado sem consideração pelos fregueses, sentiu o coração opresso e, para se distrair, tirou do bolso a gorda carteira e pôs-se a contar o dinheiro. Havia muito, mas Fiódor queria mais ainda. O diabo de óculos azuis trouxe-lhe outra carteira, mais gorda até, mas ele queria sempre mais, e quanto mais contava, menos satisfeito se sentia.

Ao anoitecer, o maligno trouxe a sua presença uma patroa alta, peituda, de vestido vermelho, e disse-lhe que era sua nova esposa. Até tarde da noite, ficou beijando-a e comendo pão-de-ló. Depois, deitado sobre colchão macio de penas, virava-se de um lado para outro, não conseguindo adormecer. Vinha-lhe uma sensação de medo.

— Tenho muito dinheiro — dizia à mulher. — Olha que os ladrões são capazes de entrar aqui em casa. Seria bom você ir espiar por aí, com uma vela!

Não dormiu a noite toda, levantando-se a cada momento, para verificar se o baú estava intacto. De manhãzinha, era preciso ir à missa. Na igreja, honra- se do mesmo modo o rico e o pobre. Quando Fiódor era pobre, rezava na igreja assim: “Perdoa. Senhor, a este pecador!” O mesmo dizia agora, depois de enriquecer. Qual era a diferença então? E, depois da morte, o rico Fiódor não seria enterrado em ouro, nem em diamantes, mas na mesma terra negra em que se enterrava o último dos mendigos. Iria arder no mesmo fogo que os sapateiros. Sentia-se despeitado por tudo aquilo e, ao mesmo tempo, tinha um peso em todo o corpo, em conseqüência do jantar; em lugar da oração, esgueiravam-se, para dentro de sua cabeça, pensamentos sobre o baú de dinheiro, os ladrões, e sobre a alma que vendera, irremediavelmente perdida.

Saiu da igreja zangado. Para expulsar os pensamentos maus, entoou, como fazia antes, uma canção a plenos pulmões. Mas, apenas começara, acercou-se dele um policial e disse-lhe com uma continência:

— Senhor, os cavalheiros não podem cantar na rua! O senhor não e um sapateiro!

Fiódor encostou os ombros a um muro e pôs-se a pensar no que faria para se distrair.

— Senhor! — gritou-lhe o zelador de uma casa. — Não se apóie muito no muro, vai sujar a peliça!

Fiódor entrou numa venda e comprou a melhor gaita-de-boca, depois foi andando pela rua, tocando. Todos os transeuntes apontavam-no com o dedo, rindo.

— E é um senhor! — zombavam dele os cocheiros. — Parece um sapateiro…

— Pensa que os cavalheiros podem fazer baderna? — disse-lhe o policial. — Só falta ir a um botequim!

— Senhor, uma esmolinha pelo amor de Deus! — imploravam os mendigos, cercando Fiódor por todos os lados. — Uma esmolinha!

Antes, quando era sapateiro, os mendigos não lhe davam atenção, mas agora não o deixavam passar.

Em casa, foi recebido pela nova mulher, vestida de casaquinho verde e saia vermelha. Quis acariciá-la e já levantara o braço para um safanão nas costas, quando ela disse, zangada:

— Mujique! Ignorante! Não sabe lidar com senhoras! Se gosta de mim, beije-me a mão, mas não vou permitir que me bata.

“Vida de excomungados!”, pensou Fiódor. “Como vive essa gente! Não se pode cantar, nem tocar gaita; nem brincar com uma mulher… Irra!”

Apenas se sentara com a patroa para tomar chá, apareceu o maligno de óculos azuis e disse:

— Bem. Fiódor Pantieléitch, eu cumpri fielmente a minha parte. Agora, o senhor vai assinar um papelzinho e fazer o favor de me acompanhar. Já teve ocasião de saber o que significa a vida de rico, chega!

E arrastou Fiódor para o inferno, diretamente para a fogueira, e os diabos acorreram de todas as partes, gritando:

— Bobalhão! Imbecil! Burro!

No inferno, havia um fedor horrível de querosene, podia-se sufocar.

Mas, de repente, tudo desapareceu. Fiódor abriu os olhos e viu sua mesa, as botas, a lamparina de latão. O vidro da lamparina estava preto e a pequena chama, que havia sobre o pavio, emitia, como uma chaminé, fumaça fedorenta. Ao lado, estava o freguês de óculos azuis, gritando zangado:

— Bobalhão! Imbecil! Burro! Vou te ensinar uma coisa, trapaceiro! Tomou a encomenda duas semanas atrás e as botas ainda não estão prontas! Pensa que tenho tempo de vir a tua casa cinco vezes por dia, para buscar as botas? Canalha! Animal!

Fiódor sacudiu a cabeça e pôs-se a trabalhar nas botas. O freguês ficou ainda muito tempo dizendo impropérios, ameaçando-o. Depois que ele, finalmente, se acalmou. Fiódor perguntou-lhe, carrancudo:

— Com o que se ocupa, patrão?

— Fabrico rojões e fogos de bengala. Sou pirotécnico.

Tocaram as matinas. Fiódor entregou as botas, recebeu o dinheiro e foi à igreja.

Rua acima e abaixo, passavam carruagens e trenós com mantas de pele de urso. Pela calçada, ao lado da gente do povo, caminhavam comerciantes, senhoras, oficiais… Mas Fiódor não sentia já inveja e não maldizia mais a sorte. Pareceu-lhe que ricos e pobres viviam igualmente mal. Uns tinham a possibilidade de andar de carruagem, outros, de cantar a plenos pulmões e tocar gaita, mas, em suma, esperava a todos o mesmo túmulo e nada existia na vida que merecesse a pena de entregar ao maligno a menor partícula sequer da alma.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Bruneaux

 
Breg’aguilhão
emigra minh’alma
pra junto de ti
ainda qui
ainda
aqui

essa dor
alma que estica quilos de metros
sem quebrar
ainda qui
ainda
aqui


 Ésse-dois Pragmático - < 3
versinhos.
bobeira nervosa,
de dizer diferente
ou desdizer
o “te amo”
batido, surrado
por julias e biancas das bancas.
romancezinhos  entre jornais velhos...
se adoeces: te faço canja de galinha.




Gúgou
te gugoulear em cada barra que abre ou fecha esses versos matemáticos
tuas palavras/fotografias/instantes\
caetano canta um compositor menor e vende mais que nunca. por que?
“onde está você agora?”
querer ou controlar
ou querer controlar
querer
teu bem, o nosso
seguir pegadas leves around the whole world wide web.


domingo, 6 de maio de 2012

Entrevista com Bezerra da Silva


A entrevista que o Bezerra da Silva NÃO me deu. 

Tempos atrás eu peguei na biblioteca um livro do Sérgio Cabral, (o Sérgio pai por que o Juninho é melhor nem falar nada), o “ABC do Sérgio Cabral”, um livro muito divertido. Sérgio Cabral era jornalista do O Pasquim e sabe muito sobre samba e cultura popular, apesar de ironicamente, ser vascaíno.
Então tinha lá no livro uma sacada de gênio que foi a construção de uma entrevista com Drummond, que na verdade não aconteceu como se concebe uma entrevista, o poeta era bem avesso a entrevistas, Cabral tratou de inventar uma através da sua pesquisa na obra do poeta. Ficou tão bacana que eu digitei palavra por palavra e publiquei aqui. Vou colar a brincadeira, com muito "menas" capacidade e diletância de sobra, com o aparato da internet vou me aventurar a “entrevistar” o Bezerra da Silva, que Deus o tenha, malandraço que segundo dizem foi tão malandro que pouco antes de morrer deu uma rasteira no diabo e se converteu a Cristo.
Ah, e toda palavra nessa entrevista com o Bezerra foi proferida por ele, sim, ainda que nas suas canções.
 http://www.cenacarioca.com.br/wp-content/uploads/2012/01/Bezerra-da-Silva.jpg

TG – Boa tarde seu Bezerra, ouvi dizer que o senhor não gosta muito de dar entrevistas.
Bezerra da Silva – Assim como Jó suportou provações. Eu também vou suportar.
TG – Eu li que quando você era menino vendia cocada na praça Mauá. Qual vendia mais, a preta ou a branca?
Bezerra da Silva – É, cocada boa. Tem preto que come da branca, tem branco que come da preta. Tem gosto pra todo freguês, só não vale misturar, vai numa de cada vez, não misture o paladar.
TG – Nos tempos da juventude, a boemia e coisa e tal, a turma era de briga? Ouvi dizer que o Senhor travou uma navalhada épica com o Zé Tonico, e ele levou a pior.
Bezerra da Silva – Se eu não derrubasse, eu caía. Porque o malandro era forte, ele dava pernada, dava cabeçada, ele era de morte. Logo a mim que o malandro queria desmoralizar, até a minha crioula de fé falou que na marra ele ia tomar. A própria lei é quem diz que a defesa é um direito sagrado.
TG – E essa coisa da malandragem, ainda existe?
Bezerra da Silva – Conheço muito malandro que é malandro de conversa. Se a mulher não mete os peito, eles passa fome a beça.
TG – Você é um compositor respeitado, um cara muito importante na história do samba. Hoje você vive dos direitos autorais?
Bezerra da Silva – O meu salário é o mínimo, porém é o máximo que eu consigo vencer, eu só sei que recebi meu pagamento, que não deu pra comprar meu alimento, remarcaram os preços, eu fiquei a pé.
TG – Mas o senhor parece feliz agora, ainda que vivendo com o mínimo.
Bezerra da Silva – Eu andava nas trevas e clamei por Jesus, encontrei a verdade, um caminho de luz. Descobri que a vida era só ilusão, é preciso coragem pra tomar decisão, o encontro com Cristo a Deus me levará, com certeza na vida nada me faltará, e a paz prometida por Jesus de Nazaré só será concedida pra quem tiver fé, hoje estou liberto sem mágoa e rancor reconheço em Cristo o meu salvador, o mal foi banido e no meu peito é somente amor. Ganhei nova vida, com Jesus na frente eu sou vencedor!
TG – E você tava muito mal antes dessa nova vida?
Bezerra da Silva – Hepático, todo esquelético. Todo raquítico cheio de cosmético, e paralítico, coro hipotético.
TG – Nossa, eu não sabia disso.
Bezerra da Silva – Um cruel da pesada, chorando.
TG – E qual foi o momento mais pesado que o senhor já viveu?
Bezerra da Silva – Fui n'um forró lá na cachanga do Abdias, nunca vi tanta alegria e poeira levantar. Mas de repente quando bate meia-noite, chegou um cara com uma foice mandando o forró parar, mas se deu mal porque não foi de brincadeira. Apareceu tanta peixeira! Só via faca voar, voar, voar. Só via faca voar. E a culpada da encrenca foi Quitéria que deitou n'uma capela com o tal de Zé Gambá. O burburinho chegou no ouvido do marido, foi aí que o boi traído correu lá pra confirmar. Pegou a nega de chamego com o Zé, quebrou a cara da mulher e começou o bafafá. E eu que tava no forró, no sapatinho, fui saindo de mansinho me toquei no bambuzal. Faca voava que nem disco voador.
TG – Faltava a lei Maria da Penha nesse tempo... Um conselho malandro pra quem tá na pior, abandonado? Pra encerrar.
Bezerra da Silva – Você está no fundo do poço meu irmão, só existe Jesus Cristo que vai lhe estender a mão. Se você acreditar na palavra que Jesus é a porta, luz, caminho e verdade sua vida se transformará em um rio de amor.
TG – Eu te agradeço o nosso papo, seu Bezerra!
Bezerra da Silva – Conversa fiada matou carambola.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Um Soneto

Soneto de Teresa de Ávila, 1515-1582

Ao Cristo crucificado (Tradução de Manuel Bandeira, 1886-1968)


Não me move, Senhor, para querer-te,
o céu que me hás um dia prometido;
nem me move o inferno tão temido,
para deixar por isso de ofender-te.


Move-me tu, Senhor, move-me o ver-te
cravado nessa cruz e escarnecido;
move-me no teu corpo tão ferido
ver o suor de agonia que ele verte.

Move-me ao teu amor de tal maneira,
que a não haver o céu eu te amara
e a não haver o inferno te temera.

Nada tens a me dar porque te queira
pois se o que ouso esperar não esperara,
o mesmo que quero te quisera.

sábado, 21 de maio de 2011

A Cruz, de Luiz Felipe Pondé - Jornal Folha de São Paulo, 2009.

ANOS ATRÁS, em Paris, o historiador Jacques Le Goff me falava da sua preocupação com o destino da cultura ocidental. Para ele, o Ocidente poderia perder sua identidade como resultado de sua própria produção cultural.

Outros intelectuais também partilhariam de suas inquietações. Entre eles, o antropólogo Lévi-Strauss, morto semana passada. Le Goff se inquietava porque parte das agonias da cultura ocidental teria sido fruto dos "achados" da história e da antropologia e seus frutos, as filosofias e políticas relativistas do século 20.

O relativismo existe desde os sofistas gregos e tem em Protágoras seu ícone máximo de então. Mas o que é "relativismo"? Em Protágoras é: "O homem é a medida de todas as coisas" (versão curta). Isto quer dizer que tudo é criação humana: a moral, a religião, enfim, as verdades de cada cultura. Sentados num bar, diríamos: "Cada um é cada um".

A história contemporânea acentuou essa versão das coisas quando afirmou que as épocas têm suas concepções de mundo específicas e que não podemos dizer que uma época seja melhor do que a outra. A antropologia, por sua vez (e aqui entra Lévi-Strauss), afirmou que as culturas não podem ser comparadas umas com as outras sem cometermos o pecado de não percebermos que cada cultura seria um sistema fechado em si mesmo, onde um comportamento só poderia ser julgado pelos valores morais da própria cultura.

Por exemplo, matar bebês pode ser um horror moral acima do equador e uma obrigação sublime abaixo do equador. É comum remeter a Lévi-Strauss a descoberta da "dignidade intrínseca" de cada cultura, e que não se deve julgar uma cultura usando valores de outras.

Não há dúvida que essa atitude é essencial para a antropologia. O problema começaria quando pensamos no impacto do relativismo no próprio Ocidente que o inventou. Dito de outra forma: o relativismo se transformou numa militância política e moral apenas no Ocidente. Enquanto os ocidentais estariam sofrendo de uma "indigestão" devido à assimilação do relativismo, as "outras" culturas, estudadas pelos próprios ocidentais, permaneceriam no seu repouso não contaminado pelo relativismo. Trocando em miúdos: muçulmanos podem permanecer acreditando em seu paraíso com virgens, índios em seus espíritos da floresta, enfim, apenas os ocidentais deveriam "relativizar" seu Deus e suas "verdades".

Sendo os cientistas sociais, os filósofos, os professores e os jornalistas maciçamente ocidentais, seriam as crianças deles que deveriam ser educadas duvidando da validade universal de seu mundo. Aí entra a inquietação de Le Goff: o Ocidente poderia se dissolver como identidade à medida que relativizaria a si mesmo, enquanto as "outras" culturas seriam poupadas da crítica relativista, porque indiferentes à angústia relativista ocidental e, também, porque contam com a simpatia do Ocidente nessa indiferença e na defesa de sua "dignidade intrínseca".

A verdade é que os homens são sempre contraditórios e, ainda que eu não saiba se Lévi-Strauss de fato partilhava da mesma angustia de Le Goff, algumas pessoas afirmam que ele admirava seu avô Rabino e que julgava os racionalistas ateus uns chatos e preferiria aqueles que acreditam em Deus. Pode ser boato, mas isso faria dele um homem mais interessante do que alguns que engoliram o relativismo assim como quem come pão e vai ao circo.

Um exemplo da "indigestão" causada pelo relativismo no Ocidente é o recente caso dos crucifixos nas escolas italianas. Aparentemente uma mãe se queixou de que o filho se sentia "desrespeitado" porque, não sendo cristão, tinha que frequentar uma sala de aula com uma cruz na parede. A partir daí, teriam decidido pela proibição do crucifixo nas escolas.

Essa decisão é ridícula porque a cruz é um símbolo, seja eu cristão ou não, das raízes do próprio Ocidente, naquilo que ele mais preza: amor ao próximo, generosidade e justiça, enfim, um Deus que morre de amor. Nós contemporâneos somos ignorantes de um modo gritante acerca do cristianismo, confundindo-o com alguns de seus momentos mais infelizes e cruéis (toda cultura é infeliz e cruel de alguma forma). Essa proibição cospe na cara de 2.000 anos de história de uma grande parte da humanidade, e os ignorantes que a realizaram deveriam ser obrigados a pedir desculpa aos cristãos.

terça-feira, 8 de março de 2011

Singela Homenagem ao Grande Mussum

Tô considerando romper meu relacionamento com a marvada pinga e seus filiados e ficar só na sacarose e na cafeína...

No vídeo em anexo a dra. Ana Beatriz Barbosa informa sobre o consumo de álcool com dados surpreendentes que não estão associados ao consumo desregrado, mas ao aperitivo de fimdesemanis.

"O álcool é uma droga muito pesada que faz um processo inflamatório no cérebro, muda a neurobioquímica toda, muda a transmissão elétrica das sinapses. O álcool é capaz de fazer destruições em tudo que é envolto em gordura, o nosso cérebro todo é envolto em gordura isolante porque ele é uma cadeia de ligações elétricas. Então, o álcool, ele sempre faz lesão onde tem tecido adiposo, e o nosso cérebro é banhado, é revestido de tecido adiposo..." "...As conseqüências são devastadoras: doenças auto-imunes a longo prazo, cirrose, diabetes, depressão, síndrome do pânico..."



Este post é em homenagem ao Mussum.


Veja a entrevista da Ana Beatriz para Marília Gabriela AQUI

Mas não deixo de RIR, ainda que esteja a CONSIDERAR!